5 de abr. de 2012

MALDITO BENEDITO (parte 1)





Os Senhores do Mahamad [Conselho da Sinagoga] fazem saber a Vosmecês: como há dias que tendo notícia das más opiniões e obras de Baruch de Spinoza procuraram, por diferentes caminhos e promessas, retirá-lo de seus maus caminhos, e não podendo remediá-lo, antes pelo contrário, tendo cada dia maiores notícias das horrendas heresias que cometia e ensinava, e das monstruosas ações que praticava, tendo disto muitas testemunhas fidedignas que deporão e testemunharão tudo em presença do dito Spinoza, coisas de que ele ficou convencido, o qual tudo examinado em presença dos senhores Hahamim [conselheiros], deliberaram com seu parecer que o dito Spinoza seja heremizado [excluído] e afastado da nação de Israel como de fato o heremizaram com o Herem [anátema] seguinte:


Com a sentença dos Anjos e dos Santos, com o consentimento do Deus Bendito e com o consentimento de toda esta Congregação, diante destes santos Livros, nós heremizamos, expulsamos, amaldiçoamos e esconjuramos Baruch de Spinoza [...] Maldito seja de dia e maldito seja de noite, maldito seja em seu deitar, maldito seja em seu levantar, maldito seja em seu sair, e maldito seja em seu entrar [...] E que Adonai [Soberano Senhor] apague o seu nome de sob os céus, e que Adonai o afaste, para sua desgraça, de todas as tribos de Israel, com todas as maldições do firmamento escritas no Livro desta Lei. E vós, os dedicados a Adonai, que Deus vos conserve todos vivos. Advertindo que ninguém lhe pode falar bocalmente nem por escrito nem conceder-lhe nenhum favor, nem debaixo do mesmo teto estar com ele, nem a uma distância de menos de quatro côvados, nem ler Papel algum feito ou escrito por ele.


Herem – anátema – pronunciado contra Spinoza, em 27 de julho de 1656, quando tinha 23 anos.


O panteísmo ateu


Após ter sido excomungado do judaísmo, Baruch optou por usar a tradução de seu nome original (Baruch Spinoza) para o latim (Benedictus de Spinoza), ou na forma aportuguesada – Bento de Espinosa.


Espinosa é hoje reconhecidamente um dos grandes apóstolos do racionalismo, e um dos pensadores mais importantes da história ocidental. Entretanto, mesmo tal reconhecimento é ainda muito pouco perto de toda a revolução que seu pensamento provocou em sua época.


Em seu monumental “Iluminismo Radical” (Ed. Madras, tradução de Claudio Blanc), o professor de Princeton, Jonathan Israel, nos traz um panorama incrivelmente detalhado do que efetivamente ocorreu entre 1650 e 1750 na Europa, e de como a Filosofia, e principalmente as ideias de Espinosa, prepararam terreno para a Revolução Francesa, antes mesmo dos primeiros tiros terem sido disparados na Bastilha (trechos adaptados, retirados da obra):


“Já na década de 1740, Antonio Genovesi, um pensador do Iluminismo italiano, que nunca deixou de ser simpático ao cristianismo, examina todas as cinco tradições filosóficas que lutavam para dominar a vida intelectual europeia – o aristotelismo escolástico das escolas [que perdurava por séculos] e as quatro classes dos modernos:


O Cartesianismo merece um respeito considerável. Genovesi louvou Descartes por ter demolido o escolasticismo, usando a “dúvida” como um instrumento de investigação para superar o ceticismo, e por introduzir a “liberdade para filosofar”; e concorda que a alma humana é substância incorpórea, totalmente distinta da matéria. Entretanto, ele também acha que o Cartesianismo contém sérias falhas, sólidas percepções intuitivas imbuídas de erro, as quais levam em última instância ao “fanatismo” e à subversão da verdade cristã.


Haviam também os partidários do sistema leibniziano-wolffiano, idealistas e monistas, que lhe pareciam inofensivos; A seguir vinha o empirismo de Newton e Locke, que de acordo com Genovesi, não fornecia uma base adequada para a coexistência estável da razão e da fé.


A quarta categoria principal de modernos, e de longe a pior, eram os deístas radicais, os quais negam os Evangelhos e os milagres de Cristo, bem como rejeitam o absolutismo do “bem” e do “mal” e a imortalidade da alma. Segundo ele, o líder do deísmo moderno seria Espinosa.


Para Genovesi, nenhum dos sistemas filosóficos modernos trazia de maneira adequada o sentido do mundo: do Cartesianismo, florescera o Espinosismo, o pensamento leibniziano leva ao idealismo, e o Newtonismo, ao puro mecanicismo. O panteísmo ateu, avisa Genovesi, retorna aos pitagóricos e eleáticos da antiga Grécia e era a principal ameaça ao bem-estar da Itália [e de toda a Europa].


Como os espinosistas podiam ser derrotados em termos filosóficos? Genovesi admite que simplesmente não sabe. Talvez, no final, apenas a fé, o coração humano e a ação de um governo determinado podem repelir a ameaça.


Assim, a Filosofia pura aparentou estar falida, inclinada antes a confundir do que ajudar o homem a encontrar sua salvação. Nesse texto, escrito em italiano e dirigido a uma grande platéia, Genovesi mais uma vez cutucou Espinosa, porém sem citar seu nome, apenas aludindo a ele de modo sombrio e deixando clara sua apreensão com relação ao "filósofo mais ímpio e sangue frio do século passado"”.


Ora, se até hoje os ateus não são muito bem vistos na sociedade, como explicar a “blindagem” de Espinosa em meio a tantos ataques e acusações vindas das mais variadas frentes? Como poderia um homem simples, filho de mercadores, ter desenvolvido um sistema de pensamento tão profundo e aparentemente revolucionário de dentro dos cômodos da própria casa? Teria sido este “ímpio”, este “maldito”, sido auxiliado por forças demoníacas?


Não, não, Espinosa não acreditava no Diabo e tampouco em espíritos malignos a seduzir os desavisados... Mas no que ele cria, afinal? Sabe-se que muitas vezes são intitulados ateus aqueles que se voltam contra as doutrinas religiosas ditas “oficiais”. Espinosa cria na liberdade do pensamento, mas seria somente isso? Ou, no fim das contas, seria toda sua filosofia, o sistema que mudou o mundo ocidental, edificada tão somente em nada mais do que o próprio Deus?


» Na continuação, o pensamento de Espinosa


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Crédito da imagem: Stefano Bianchetti/Corbis.



 


Fonte: O Textos para Reflexão é um blog que fala sobre espiritualidade, filosofia, ciência e religião. Autoria do escritor Rafael Arrais (raph.com.br)


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