8 de mai. de 2012

MALDITO BENEDITO (parte 2)





« continuando da parte 1


Bruma de Ouro, o Ocidente ilumina

A janela. O assíduo manuscrito

Aguarda, já carregado de infinito.

Alguém constrói a Deus na penumbra.

Um homem engendra a Deus. É um judeu

De olhos tristes e pele pálida;

O tempo o leva como leva o rio

Uma folha que desce pelas águas.

Não importa. O feiticeiro insiste em esculpir

A Deus com geometria delicada;

De sua enfermidade, de seu nada,

Segue erigindo a Deus com a palavra.

O amor mais pródigo lhe foi outorgado,

O amor que não espera ser amado.


Baruch Spinoza, poema de Jorge Luis Borges (tradução de Rafael Arrais).


Uma suave cabeça pensativa


Se Descartes havia separado mente e corpo um substâncias distintas, esta material, a primeira espiritual, Espinosa foi mais além: para o pensador holandês, só poderia haver uma única substância, pois que se houvessem duas, ambas deveriam necessariamente ser o resultado de uma substância ainda anterior. Num brilhante encadeamento de causa e efeito, chegou a “substância que não poderia criar a si mesma”, sendo ela, portanto, incriada e eterna, aquela que se opõe ao nada (afinal, existe algo). Portanto, mente e corpo, e todos os componentes do Cosmos, nada mais eram do que irradiações da substância, que era o próprio Deus. Espinosa não cria que as coisas eram apenas materiais ou espirituais, mas que eram materiais e espirituais, mundanas e divinas, ao mesmo tempo.


Com toda sua filosofia edificada no próprio Deus, Espinosa terminou por ser o grande reformador do pensamento ocidental, o grande “destruidor da autoridade eclesiástica”, não porque fosse um “matador de deuses”, conforme Nietzsche, mas porque substituíra as interpretações bíblicas de Deus por uma ainda mais profunda, baseada apenas na pura lógica filosófica. Quando Nietzsche proclamou que o deus bíblico estava morto, foi porque Espinosa já o havia retirado de seu pedestal há muito tempo... Caíra um deus semelhante aos homens, e surgira um Deus cósmico, irradiador de todas as partículas e todas as galáxias do universo.


A filosofia de Espinosa, entretanto, não era para qualquer um. Era preciso uma certa abertura da mente, um certo distanciamento das paixões embutidas em crenças e descrenças, para que pudesse ser compreendida em toda sua profundidade. Apesar de “Ética” ter sido sua obra prima, as bases lógicas que a sustentam já estavam prontas desde sua juventude... Porque então Espinosa somente entregou seu livro para os amigos publicarem já nos últimos dias de vida, quando certamente já pressentia a própria morte? Ora, é que Espinosa nunca quis ser nenhum revolucionário, e em realidade sabia muito bem que seu sistema filosófico poderia, e provavelmente causaria uma revolução no mundo ocidental. E ele estava certo.


Ao descrever Deus como uma força cósmica, impessoal e sem características humanas, Espinosa não estava sendo completamente original. Sua premissa já era conhecida de místicos orientais e até mesmo da cabala judaica, além de conter referências claras a filosofia estoica e, em menor escala, ao atomismo das escolas gregas. A sua forma “geométrica” de descrição da própria filosofia, sem dúvida influência de Descartes, é que terminou por tornar a “Ética” uma obra prima tanto da filosofia quanto da espiritualidade humana... E, como toda obra desse porte, não escapa dos grandes paradoxos:


O bem e o mal

Para Espinosa o bem e o mal eram conceitos relativos às sociedades humanas, e não fazia sentido crer em um deus que observa e pune os pecados alheios. Ao mesmo tempo, entretanto, a própria busca do conhecimento de Deus era uma virtude, e os sábios que a empreendiam agiam naturalmente no bem, e afastavam automaticamente o mal, na medida da sabedoria de cada um.


Do determinismo

Em sua filosofia constatamos que a grande maioria dos homens e mulheres são guiados por desejos provenientes das paixões da alma, de modo que quase ninguém consegue ser efetivamente livre, e tudo parece estar determinado pelo eterno movimento das substâncias... Por outro lado, existiam alguns poucos que conseguiam olhar para dentro de si próprios e identificar ou até mesmo compreender tais paixões. Do autoconhecimento dos seres, em maior ou menor grau, surgia a liberdade em grau correspondente. A atividade mais nobre de um ser seria, portanto, buscar a compreensão do próprio Deus, pois no fundo somos uma forma do Cosmos compreender a si mesmo.


Do deísmo

Espinosa negava totalmente que as verdades acerca da criação pudessem ser reveladas, como através de santas tábuas ou inspirações divinas. Por isso foi muitas vezes considerado um líder deísta. Mas, sob outro ponto de vista, o fato de todos sermos formados pela irradiação da substância divina, e termos uma conexão direta com a eternidade, nos faz automaticamente receptáculos diretos do movimento de Deus. Talvez não fosse possível que Deus se revelasse diretamente a alguns ditos profetas, um movimento em nossa direção; Mas era perfeitamente possível que cada um de nós compreendesse parte da fagulha divina que trazemos, todos nós, num movimento em direção ao infinito.


Do panteísmo

Se por um lado os críticos terão razão em dizer que a filosofia de Espinosa faz da Natureza um novo Deus, e a engrandece, por outro estarão equivocados em afirmar que Espinosa reduziu Deus a meros eventos naturais, às coisas que compõe o Cosmos... Assim como Epicteto se referia a um “Zeus, Deus dos deuses”, Espinosa deixou claro que todos os materiais que compõe o mundo, sejam os corpos e partículas materiais, sejam os mentais, são todos irradiações da substância divina. Tudo é Deus, de modo que não faria sentido tentar encontrar a Deus apenas em catedrais grandiosas ou através da mediação dos eclesiásticos, qualquer pedra ou galho partido seria tão divino quanto tudo o mais. É somente através da razão, uma razão conectada ao Cosmos, de acordo com o logos grego, que poderemos apreciar o contato com Deus, estejamos onde estivermos.


Do ateísmo

Se por um lado Espinosa foi acusado de ateísmo em sua época, por outro qualquer um com certo discernimento compreenderá que a acusação se referia ao fato de ele ter contrariado diretamente os dogmas das doutrinas religiosas vigentes, particularmente negando milagres e a autoridade dos eclesiásticos. Mesmo sua crítica a Bíblia se focava exclusivamente na interpretação literal, e ainda que negasse os milagres enquanto eventos sobrenaturais, o próprio Espinosa buscou explicações naturais para alguns deles, como, por exemplo, o da “divisão” do Mar Vermelho, que parecia a Espinosa que fosse um evento natural, explicado pelo vento.

O grande pensador holandês não poderia, entretanto, ser menos ateu no sentido de negação a priori da existência de um Criador. Não só toda sua filosofia se sustenta em Deus, o próprio sentido de virtude e de ética que sempre defendeu consistia em, a todo momento, saber diferenciar as paixões mundanas dos desígnios sagrados da Natureza, e somente assim, seguindo a Natureza e não as próprias paixões, ser verdadeiramente livre e feliz.


Na preposição final da “Ética”, Espinosa inaugura quase que uma nova religião filosófica universal: “o estado de bênção não é a recompensa da virtude, mas a própria virtude; também não usufruímos desse estado por restringir nossas luxúrias; ao contrário, justamente porque usufruímos dele é que somos capazes de restringir nossas paixões”. A salvação, apesar de árdua e rara, não precisava ser postergada para depois da morte. A filosofia de Espinosa era uma reflexão sobre a vida, e de como, talvez um dia, alcançar a salvação dentro deste mundo – um mundo tão divino quanto mundano.


O monumento feito em homenagem a Espinosa, em Haia (na Holanda) foi assim comentado por Ernest Renan em 1882:


"Maldição sobre o passante que insultar essa suave cabeça pensativa. Será punido como todas as almas vulgares são punidas – pela sua própria vulgaridade e pela incapacidade de conceber o que é divino. Este homem, do seu pedestal de granito, apontará a todos o caminho da bem-aventurança por ele encontrado; e por todos os tempos o homem culto que por aqui passar dirá em seu coração: Foi quem teve a mais profunda visão de Deus".


Maldito Benedito Espinosa! Maldito, na boca dos de alma pequena, somente Benedito nas demais...


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Crédito da imagem: Wikipedia (estátua de Espinosa em Haia).



 


Fonte: O Textos para Reflexão é um blog que fala sobre espiritualidade, filosofia, ciência e religião. Autoria do escritor Rafael Arrais (raph.com.br)


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