3 de mai. de 2011

PEDRAS NO CAMINHO





"Crer para compreender e compreender para crer" - pode-se dizer que esse era mesmo o lema de Sto. Agostinho. Há muitos que irão discordar, dizer ser algo impossível, mas fato é que a fé racional, ou fé raciocinada, é não somente algo possível e plausível, como o grande objetivo de todo sábio - a harmonia do caminho entre aquilo que já compreendemos e aquilo que nos falta compreender, entre o que já sabemos e nos falta saber, entre nossa doce convicção e o amargo desconhecido.


Dirão os que discordam, enfurecidos em si próprios: "mas e qual homem conseguiu tal objetivo?" - Nenhum! Nenhum conseguiu e talvez nenhum consiga, pelo menos no estágio em que é conhecido por "homem". Mas da mesma forma a bactéria não se tornou peixe, e depois réptil, e depois mamífero, e depois homem, da noite para o dia. O caminho! É isso o que importa... Importa chegar para depois partir, e partir com o horizonte em nossa mente. Importa amar a possibilidade de caminhar sempre à frente, até o infinito, ao invés de resmungar e dizer "que todos os que pensam em tais mistérios são tolos". Ora, os maiores tolos são exatamente aqueles que creem que mistérios não existem, que são falsos de antemão. Como se o seu próprio pensamento fosse o mero agitar aleatório de partículas no cérebro, como se as leis naturais tenham permanecido simétricas e precisas por bilhões de anos apenas porque "é assim que as coisas são".


Entretanto, é preciso controlar a imaginação, e não permitir que gere por si mesma as imagens mentais, que explique o mundo sem interagir com o mundo. Não é somente meditando no topo da colina que o sábio se fez sábio, mas sim conhecendo a si próprio, a seus próprios pensamentos, para que ao lidar com o mundo não fosse contaminado pelo dogma alheio. O dogma é como um rio represado: enquanto não arrebentarmos a represa ele pode permanecer estático, satisfeito em sua própria ignorância, acomodado na mais falsa das suposições - a de que já descobriu todas as verdades do mundo... Ora, e o dogma existe tanto para o crente quanto para o descrente. A paralisia do pensamento não é exclusividade daqueles que creem sem raciocinar, pois há também aqueles que descreem sem raciocinar - e igualmente, ambos estão paralisados.


Mas o sábio atira a pedra e ela rompe as represas: não é o sábio quem muda o ignorante, mas o ignorante que muda a si próprio, entusiasmado pela doce leveza da sabedoria quando essa lhe aparece sem os diversos véus e as diversas máscaras em que as doutrinas dogmáticas lhe desfarçaram! E mesmo o próprio sábio percebe o perigo de cair nas viagens intermináveis da imaginação que gera a si mesma, alheia ao mundo; ou da negação a priori do pseudo-cético que, por medo do que lhe é desconhecido, prefere negar a tudo que lhe incomode as idéias. Por isso também o sábio segue a natureza: quando está aprendendo a nadar, permanece no raso da praia, e ainda não se arrisca no oceano profundo; e quando está aprendendo a voar, primeiro plana com a brisa, e somente depois arrisca vôos mais altos e cansativos.


Pois é assim que se constrói o conhecimento humano. Muito diferente do que os adeptos da negação defendem, não é somente a ciência que explica o mundo. De fato, a ciência antiga não era muito diferente da religião: que o digam Hermes, Sócrates, Pitágoras, ou mesmo o Pórtico de Atenas, a biblioteca de Alexandria ou a meca da ciência islâmica - Al-Andalus! Mas hoje tudo isso foi destruído pelos homens ignorantes que, seja no lado da crença ou do ceticismo, sempre pretenderam ser os únicos detentores da verdade. É porisso que uns queimaram mártires e papiros, e outros mais elegantes, se comprazeram em relegar ao ostracismo histórico todo dito cientista que se opunha a um materialismo dogmático. Mas não nos delonguemos na ignorância humana: fato é que a ciência nunca pretendeu explicar sozinha o mundo, nunca pretendeu sair do estudo do Mecanismo da natureza para o estudo de seu Sentido. Porisso mesmo temos ainda duas lentes que precisam ser usadas em conjunto para regular o grau de visão da natureza: ciência e religião. Uma descreverá o Mecanismo. A outra descreverá o Sentido.


Ou será que somos todos como pedras no caminho de um deus ausente, que se comporta como uma entidade que ignora a sua própria criação, e mesmo sem querer chuta-nos enquanto se move de um lado para o outro, em algum lugar, sabe-se lá pensando no que! Então a terra surgiu por aglomeração de pedras-partículas, e a vida surgiu na terra porque uma pedra-asteróide aqui adentrou... E toda a evolução da vida foi decorrente de um descuido aleatório do grande deus ausente, o chutador de pedras.


Mas o que é o aleatório? Onde na natureza esse mecanismo se encontra? Onde, dentre simetrias espaciais e temporais, dentre mecanismos sutis e elegantes, encontra-se uma única pedra que se moveu sem ter tido causa? E se teve causa, ela não poderia ser aleatória... Ou seria absolutamente tudo aleatório, mesmo nossos pensamentos e vontade? Se assim for, de nada adianta nos delongarmos nessa ou em qualquer outra discussão. Mas, se as leis, as delicadas geometrias da natureza, seguirem alguma verdade misteriosa que se encontra atrás do próximo horizonte, então é para lá que o sábio deve seguir!


Nossos ancestrais descobriram a muito custo que certas pedras, ao se chocarem, apenas tiravam lascas umas das outras. Mas havia outras que produziam faíscas! E assim se fez o fogo... Nós somos as pedras, e o que está em cima é como o que está embaixo: não percamos nosso tempo em tirar lascas um dos outros, em denegrir um a "verdade" do outro. Mas construamos juntos uma mesma fogueira divina, e talvez flutuando em sua fumaça possamos um dia ser levados pelas brisas, atravéz do oceano, ao reino da verdade e do conhecimento de todos os belos mecanismos da natureza. Levantai uma pedra, e lá estará o reino de Deus.


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Crédito da foto: Shadi Samawi



 


Fonte: O Textos para Reflexão é um blog que fala sobre espiritualidade, filosofia, ciência e religião. Autoria do escritor Rafael Arrais


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